Enquanto eu estava crescendo a gente morava em uma casinha que olhava para um bloco com janelas grandes. Uma vez estava chovendo forte, bem forte, e mamãe precisou fechar o portão da garagem e eu saí para ajudar. Foi aí que eu vi a primeira vez a menininha com um cabelo grande e engraçado, encostada em uma daquelas janelonas do bloco. Vi claramente que tinham alguns pingos de chuva no rosto, caindo e caindo dos olhos dela; mas ela tinha a mão dela levantada e toda molhada pelos grandes pingos de chuva - assim ela ficou até que a chuva parasse, sorria suavemente mesmo com todos os pingos de chuva em seu rosto.
Com o tempo, aquela garotinha virou meu vício. Eu a assistia através da janela diariamente. Ela sempre aparecia, sempre tarde da noite, quando minha mãe e meu pai já estavam dormindo, sempre com suas sobrancelhas erguidas e os olhos de chuva. Algumas vezes quando o céu estava limpo, ela olhava para cima e fala com as estrelas, muitas vezes tossindo e engasgando-se - como se precisasse da chuva naqueles dias frios, como se ela estivesse pedindo àquele lá de cima para fazer com que as nuvens viessem e chorassem junto com seus próprios pingos de chuva.
Nós nos mudamos algum tempo depois que a vi a primeira vez e, vagarosamente, comecei a esquecê-la...Um dia quente e áspero de verão despedia-se do sol quando voltei lá, muitos anos depois, para vender a velha casa. Um suspiro chacoalhou-me o coração enquanto fechava os portões da antiga garagem; pensei nela, pensei no prédio que se erguia alto e escuro atrás de mim e, como em sonho, desejei vê-la. Vagarosamente abri os olhos, encarando a mesma janela, vagarosa e esperançosamente; o céu arroxeado era convidativo e eu me sentei na calçada. A luz do poste ralhou e acendeu, os grilos envaideciam-se e criqueteavam e a brisa leve da noite balançou os fios do cabelo amassado, fechei os olhos.
Logo a vi, os mesmos cabelos espalhados por todos os lados, a mesma sobrancelha frisada e a mesma boca entreaberta - como se fosse difícil de respirar -. Eu a vi conversar com deus, com um grito animalesco e mudo, sufocou o choro; ela rezou, ela implorou... Mas naquela noite a chuva nunca veio. Eu senti a sua dor, levantei-me como para acariciá-la. Cada pingo de chuva que caía dos seus olhos, brilhava a luz amarelada do poste. Ela estava chovendo.
Senti vontade de abraçá-la, cuidar dela, mas quando eu me movi ela parou e, como uma estátua, ficou encarando um ponto único no além mar de folhas escuras, enquanto a sua chuva continuava a cair através da janela. Ela levantou sua mão, esperando para ser molhada pelas lágrimas do céu - naquele dia ela não tinha nenhum tipo de sorriso em seu rosto dourado. Mas ela ficou lá. Eu fiquei lá.
Essa foi a última vez que a vi.
----------------------------------
Respeitem os sinais de pontuação ao ler.
Respeitem a cronologia da história ao interpretar.
Pra ouvir junto: Saudade - Marcelo Camelo
Fotografia por Cynthia Lou - o que ela ta segurando é um capturador de sonhos ruins.
Bem aventurados os que postam seus contos XD
Vejo vocês semana que vem. Obrigadissima pelos comentários
Nossa que perfeito, adorei *-*
ResponderExcluirmuuito perfeito *-*
ResponderExcluirestou até seguindo você
realmente muito boa *-*
beijos http://dosedetequila.blogspot.com/
Muito lindo mesmo, adorei. Bem escrito!
ResponderExcluirEstou te seguindo.
beijos, isa.
Viajei junto com vc até esse lugar, eu estava lá tb.
ResponderExcluirbeijos
fabrício
Profundo seu conto, hein?
ResponderExcluirGostei muito, apesar de triste; gosto de coisas melancólicas, não sei o porquê.
E respondendo a uma pergunta que me fizeste a tempos, sim, o nome do blog foi inspirado no livro 'A menina que roubava livros'.
Obrigada pela visita e desculpa a demora pra retribui-la.
Um abraço.
Que texto perfeito, eu pude ver as meninas só de fechar os olhos, você escreve muito bem.
ResponderExcluirBeijos